quarta-feira, 4 de maio de 2011

Nova Campanha de Desarmamento e o Porte Ilegal de Armas


Veículo: Consultor Jurídico / Veiculação: On-line - www.conjur.com.br/2011-abr-30/entregar-arma-fogo-anonimamente-cidadao-comete-crime

Mesmo com boa intenção, porte de arma segue ilegal
Por FABRICIO REBELO

A nova campanha de desarmamento voluntário do Ministério da Justiça, que começa no próximo dia 6 de maio, traz como grande atrativo para o cidadão a possibilidade de entregar armas de forma supostamente anônima, recebendo um crédito para saque em dinheiro no Banco do Brasil, aparentemente sem maior burocracia. É nisso, inclusive, que vêm apostando o Ministro da Justiça e as entidades antiarmas envolvidas na campanha, para que esta seja exitosa.

Contudo, ao que parece, os idealizadores de mais essa investida contra as armas não perceberam que a entrega anônima é ilegal. Quem simplesmente sair de casa com uma arma para entregar em qualquer posto de recolhimento poderá ser preso por porte ilegal de arma.

De acordo com o atual estatuto do desarmamento e seu regulamento, o transporte de arma de fogo pelo cidadão, seja qual for a circunstância, somente pode ser autorizado pela Polícia Federal, mesmo que com a finalidade de entrega em campanhas de recolhimento.

Vejam-se as disposições da Lei 18.826/03:

Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.

O regulamento do estatuto (Decreto 5.123/04) é igualmente translúcido ao prever as hipóteses de transporte de arma de fogo, deixando patente que este somente poderá ser realizado após prévia autorização:

Art. 28. O proprietário de arma de fogo de uso permitido registrada, em caso de mudança de domicílio ou outra situação que implique o transporte da arma, deverá solicitar guia de trânsito à Polícia Federal para as armas de fogo cadastradas no SINARM, na forma estabelecida pelo Departamento de Polícia Federal.

Mesmo na específica hipótese de deslocamento do cidadão para a entrega de arma de fogo em postos de coleta, montados em campanhas de recolhimento, a prévia autorização da Polícia Federal é exigência incontornável:

Lei 10826/03, Art. 32. Os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la, espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados, na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse[1] irregular da referida arma.

Decreto 5123/04, Art. 70, §1º. Para o transporte da arma de fogo até o local de entrega, será exigida guia de trânsito expedida pela Polícia Federal, ou órgão por ela credenciado, que contenha a especificação mínima dos dados da arma, de seu possuidor, o percurso autorizado e o prazo de validade, que não poderá ser superior ao necessário para o deslocamento da arma do local onde se encontra até a unidade responsável por seu recebimento.”

Prontamente, assim, tem-se que o deslocamento do cidadão a um posto de coleta, a fim de entregar arma de fogo em campanha de desarmamento voluntário, somente poderá ser realizado estando ele munido da correspondente autorização, o que, no caso, configura-se na guia de trânsito.

Ocorre que esse documento (guia de trânsito) não é anônimo. Conforme estabelece o art. 70 do Decreto nº 5.123/04, acima transcrito, dele deverá constar, dentre outros, a especificação mínima dos dados do possuidor, circunstância inteiramente incompatível com o anonimato, pré-anunciado como característica da nova campanha de desarmamento voluntário.

Com efeito, o anonimato presumiria a desnecessidade de obtenção da guia de trânsito para a entrega da arma. Porém, como visto, sem a autorização expedida pela Polícia Federal, o indivíduo que estiver transportando arma de fogo estará incorrendo no crime de porte ou transporte ilegal de arma de fogo, nos moldes dos artigos 14 e 16 da Lei nº 10.826/03:

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

[...]

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Repise-se, a lei não traz exceção. Portar ou transportar arma de fogo sem autorização prévia é crime. Portanto, sob a égide legal, não existe possibilidade de qualquer cidadão se dirigir a um posto de coleta de armas sem estar munido de uma prévia autorização expedida pela Polícia Federal. Se o fizer, cometerá um crime.

Registre-se, ademais, também ter sido amplamente anunciada pelo Ministério da Justiça a lotação, em cada posto de coleta de armas, de uma autoridade policial, a fim de zelar pela segurança do local.

Tal fato abriga em si uma ainda maior complexidade para a questão. Isso porque, no posto de coleta, a aludida autoridade policial terá o dever funcional de checar cada um dos cidadãos que ali chegarem para a entrega de armas, a fim de conferir se o transporte destas foi autorizado, conforme exige a lei. Se não houver tal autorização, impor-se-á a autuação em flagrante dos que estiverem transportando as armas, sob pena de, não o fazendo, cometer a própria autoridade policial outro delito, qual seja, o de prevaricação (deixar de praticar ato de ofício, art. 319 do Código Penal).

Desse modo, conclui-se que a alegada entrega anônima de armas na nova campanha do desarmamento voluntário anunciada pelo Ministério da Justiça é completamente incompatível com as leis vigentes no país, pois que, reitere-se, levar uma arma a qualquer posto de coleta sem expressa autorização da Polícia Federal configura crime de porte ou transporte ilegal de arma de fogo.

Ainda que não se volte a análise para a eficácia, ou não, das campanhas de desarmamento civil como instrumento de redução da criminalidade – o que atualmente é fortemente questionado -, não há como se admitir engendrarem-se tais campanhas em desrespeito à lei penal, até porque, se assim o for, não haverá como distinguir cidadãos de bem, eventualmente convencidos pelos argumentos antiarmas, e os criminosos com armas para fins delituosos. A estes, prevalecendo o quanto divulgado pelo Ministério da Justiça, bastaria que, se flagrados portando ilegalmente armas de fogo, alegassem que as estavam indo entregar em um posto de coleta, o que os eximiria de exibir qualquer documento sobre arma e mesmo sua própria identidade. Afinal, pelo quanto singelamente divulgado, estaria garantido o anonimato na entrega.

Sem esforço, pois, nota-se o completo desabrigo jurídico-legal em meio ao qual se inicia a nova campanha de desarmamento voluntário, posto inexistir, sob o prisma do ordenamento jurídico pátrio, possibilidade de se facultar a quem quer se seja a entrega de arma de fogo de forma anônima.

[1] E não “porte”.

FABRICIO REBELO é servidor do TJ-BA, bacharel em Direito e coordenador da ONG "Movimento Viva Brasil para a Região Nordeste".

Nenhum comentário:

Postar um comentário